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Mulher preta, de cabelo raspado e camisa branca está olhando para o céu com olhar compenetrado. Ao fundo da foto estão prédios desfocados.

Violência Política de Gênero: reflexão

9 de fevereiro de 2023
Como se encontra a representação feminina nos espaços de poder da nação?

Completamos em 20.02.2022 90 anos da promulgação do Código Eleitoral Brasileiro, que permitiu, embora com restrições, o voto feminino no país. A luta pela emancipação política feminina e a consciência da injustiça  que significava a não autorização do voto feminino, vinham ocorrendo desde o final do século XIX. No ano de 1910, formara-se a denominada Associação Feminina para o Voto, destacando-se a professora e indigenista Leolinda de Figueiredo Daltro.

Posteriormente, a partir de 1917, várias propostas foram encaminhadas ao parlamento, sem resultados concretos. Foi então que o governador eleito do Rio Grande do Norte, em 1927, José Augusto Bezerra de Mendonça estendeu o voto irrestrito às mulheres desse estado, tendo sido eleita prefeita, em 1928, da cidade de Lajes a primeira mulher, Luiza  Alzira Soriano Teixeira .

Tal acontecimento encorajou a formação de várias outras associações, que acabaram desembocando na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), que teve como uma das idealizadoras e fundadoras, a bióloga e líder feminista Bertha Maria Júlia Lutz.

A FBPF atuou fortemente através de ações, cartas aos parlamentares pressionando-os, acompanhando as sessões do Congresso, publicações, palestras e desenvolvendo estratégias para mudar o imaginário da sociedade e dos políticos em particular, de que a mulher não estaria apta às atividades da vida pública.

Como consequência, conseguiu-se a aprovação do Código Eleitoral Brasileiro, em 24 de fevereiro de 1932, porém com restrições, o que provocou a união das mulheres de todas as classes sociais e a participação de mais líderes, como Erica Komel e Natércia da Cunha Silveira, Carmen Portinho, Amélia Bastos, que, entre outras, fortaleceram a reação pela emancipação política e cidadã da mulher.

Bertha Lutz fundou outras importantes associações, aliou-se a movimentos feministas internacionais e foi eleita como primeira suplente na câmara dos deputados do Distrito Federal e, em 1933, a médica Carlota Pereira de Queiroz, foi a primeira mulher eleita deputada federal no Brasil.

Assim sendo, cabe a seguinte pergunta: Como se encontra a representação feminina nos espaços de poder da nação? É proporcional aos mais de 50% da população feminina? Como a discriminação de gênero afeta a representação política? As candidaturas são respeitadas, não há fraudes, há reserva de cadeiras, ou pelo menos cota de paridade (50%), fiscalização e a preocupação de capacitar as aspirantes à carreira política?

Na verdade, pouco avançamos em relação à justa representatividade feminina na Política. Segundo dados de 2021 da União Interparlamentar, o Brasil está na posição 142 entre 192 países, apesar de a população feminina ultrapassar o cinquenta por cento e ser a maioria do eleitorado.

Portanto, a despeito de recente legislação, resoluções e decisões dos tribunais superiores, há ainda muito a caminhar, para que as mulheres de todas as raças e etnias, possam se eleger e exercer sem constrangimentos e humilhações os seus cargos, sendo respeitadas como parlamentares eleitas e como mulheres, seres humanos, cidadãs desse imenso país(1).

Vejamos, resumidamente, os avanços e retrocessos nesta importante questão:

  • As mulheres obtiveram o direito ao voto, como vimos, embora não integralmente, no Código Eleitoral de 1932, e no Código Eleitoral de 1965. A Constituição Federal de 1988, art. 14, restabeleceu o sufrágio universal e o voto direto e secreto igualmente para todos

 

  • A Lei Geral das Eleições – lei 9.504/97, artigo 10, parágrafo 3º estabeleceu o regime de cotas nas eleições proporcionais, o que significa a reserva de um número mínimo de 30% das vagas para as mulheres e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. O descumprimento deste dispositivo legal, pelos partidos e coligações à época configura violação a direito líquido e certo de recebimento de recursos públicos de campanha.

 

  • A lei 14.192/2021, primeiro diploma legal específico ao combate à violência política de gênero, inseriu no Código Eleitoral o artigo 326-B.

 

  • A lei 14.197/2021 inseriu o artigo 359-P no Código Penal e é mais abrangente no combate e penalização da violência política.

 

  • O Tribunal Superior Eleitoral -TSE, o Tribunal Regional Eleitoral -TRE, e o Supremo Tribunal Federal- STF têm avançado através de decisões afirmativas contra fraudes, candidaturas fictícias, obrigando o repasse de verbas destinadas a candidaturas femininas e negras por meio de Resoluções, das quais citamos:

 

  • A Resolução 23.605/2019 que estabelece em seu artigo 5º, inciso IV, parágrafo 3º, contagem em dobro dos votos dados às mulheres e pessoas pretas para a Câmara dos Deputados para fins de distribuição de recursos do fundo especial de Campanha (agora EC 111/2021, art.2).

 

  • A Resolução 23.607/2019 que estabelece critérios e previsão de destinação proporcional de recursos às mulheres e pessoas pretas até a data da prestação parcial de contas. 

 

  • Em 2020 o TSE decidiu pela aplicação da cota mínima de 30% de reserva de gênero, para ocupação dos cargos nos órgãos internos dos partidos, aplicando o artigo 10, parágrafo 3º da Lei 9.504/97.

 

  • O TSE lançou em 21.03.2022 a Ouvidoria da Mulher para trabalhar em conjunto com o Poder Judiciário e um canal para receber denúncias por um acordo entre o TSE e a Procuradoria Geral Eleitoral, com a insigne participação da doutora Raquel Branquinho, Procuradora Regional da República, representando o Ministério Público Eleitoral, que desempenha trabalho institucional em conjunto com o Poder  Judiciário no combate à violência política de gênero.     (ww.tse.jus.br/eleitor/serviços/ouvidoria/ouvidoria-da-mulher).

 

  • O MPE das 27 unidades da Federação está sendo   incentivado a cobrar e exigir dos partidos políticos que alterem seus estatutos para adequá-los á lei 14.192/2021, atuem,  analisem e adotem providências na esfera penal para prontas repostas e o combate necessário à impunidade.

 

  • O lançamento em 21.03.2021 do Observatório Nacional da Mulher na Política-ONMP, proposto pela bancada feminina da Câmara Federal, pontuou a necessidade da institucionalização das normas eleitorais, para efetiva segurança jurídica e cobrança aos partidos políticos e parlamentares, pela maior transparência, adequação de seus estatutos à legislação em vigor e obrigatoriedade da criação de Ouvidorias. O ONMP está incluído na Secretaria da Mulher da Câmara Federal.

 

  • Em 18.11.2022 em Seminário nos 16 dias de ativismo, mobilização sobre Violência contra a Mulher e seu enfrentamento dentro do Ministério Público de São Paulo, foi lançada a Ouvidoria da Mulher no Ministério Público de São Paulo. Realização do MPSP com o Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP e o MP de Pernambuco. Essa Ouvidoria está sendo coordenada pela promotora de justiça doutora Silvia Chakian.

 

  • A sociedade tem feito a sua parte, denunciando as arbitrariedades na grande mídia, nas redes sociais e pela voz de inúmeras organizações e institutos não governamentais. Cartilhas têm demonstrado às candidatas e as já eleitas como reconhecer e denunciar a violência e há também cursos para capacitá-las, o que ajudou a aumentar um pouco a representação feminina no parlamento nas eleições de 2022. 

 

Qual a razão, onde está o importante entrave à participação das mulheres e mulheres pretas na política? 

Apesar dos avanços, os entraves são muito grandes, pois não há vontade política para que as mulheres ocupem os espaços de Poder, como a presidência de partidos, a Executiva nacional dos partidos, indicação para secretarias, espaços considerados eminentemente masculinos e que assim devem permanecer. Persiste a obstrução da caminhada das mulheres que se candidatam. E o impedimento às já eleitas a ocuparem demais órgãos internos.

Daí porque os partidos políticos em geral não assumem o encorajamento e capacitação efetiva das mulheres, descumprindo claramente a legislação vigente.

A PEC 18/2021 altera o artigo 17 da CF de 1988, para impor aos partidos políticos a aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política de mulheres, bem como a aplicação dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de  Campanha, e a divisão do tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão, no percentual mínimo de 30% para candidaturas femininas.

Por outro lado anistia os partidos que não tiverem cumprido tais determinações, o que afetou profundamente as candidaturas femininas nas eleições de 2022.

Institucionalizou-se, pois, a impunidade, à nível constitucional.

Registre-se que nas eleições de 2022 devido a esse clamor por paridade na representação política, mais mulheres foram encorajadas a se candidatarem, mas os casos de violência política de gênero continuaram acontecendo de modo que tivemos um percentual de apenas 17.7% de mulheres eleitas, ou seja, 91 eleitas para a Câmara Federal (contra os 15% anteriores). No Senado apenas 4 mulheres foram eleitas entre 27 senadores, num percentual de 22.5% de candidaturas femininas. Em 2018 esse percentual foi de 18.9% de candidaturas femininas, mas foram eleitas cinco senadoras. 

Autonomia versus Soberania

A CF/88 artigo 17, parágrafo 1º, assegura aos partidos autonomia para definir sua estrutura, organização, funcionamento, inclusive estabelecer os critérios para a escolha das candidaturas mais viáveis para as quais serão distribuídas as verbas. Não existe transparência(2). Autonomia não significa soberania.

Num mundo ideal as candidatas que se julgassem vítimas de violência política, teriam recursos para acionar o Poder Judiciário na expectativa de obter o reconhecimento de seu direito através da concessão de liminares e decisões imediatas, sentenças favoráveis, que, com o passar do tempo formariam significativa jurisprudência que acabaria por impor aos legisladores  a adequada reforma do sistema eleitoral.

Enquanto isso não ocorre e não sendo factível o recurso a propostas de projetos de Leis de Iniciativa Popular – PLIP (como a que resultou na lei da Ficha Limpa). as organizações da sociedade civil,  instituições, órgãos de classe, bancadas femininas nos parlamentos dos três níveis de governo, em conjunto com lideranças masculinas que apoiam essa justa causa que é da sociedade como um todo, devem ficar atentos e atentas, lutando por uma reforma do Sistema Eleitoral, para o aprimoramento da Democracia no país, facilitando a inclusão na representação Política da maioria da população brasileira, que são as mulheres e pessoas pretas.

1- Em termos de avanços e retrocessos no tratamento do ser humano mulher, citamos exaustiva pesquisa realizada pela professora Silvia Federici, em sua obra ”Caliban e a Bruxa” (editora Elefante), segundo a qual, milhares de mulheres de todas as idades foram torturadas e queimadas vivas, acusadas de bruxaria, de copular com o demônio e assar, devorar crianças. O Genocídio de mulheres que permanece invisível ocorreu maciçamente a partir do século XV até o século XVII, na Europa e América. Não se lhes dava, sequer, o direito de defesa! Pintores famosos à época documentaram em suas telas as fogueiras, perversões sexuais e infanticídios, supostamente cometidos por elas. Além da religião, o Poder Judiciário aprovava tal conduta, intelectuais da época incentivavam esse Genocídio. No entanto, até agora, no século XXI, a Caça às Bruxas continua. A imprensa tem denunciado que pessoas, na maioria mulheres têm sido perseguidas e  mortas em várias partes do mundo, sobretudo em África, no Sudeste Asiático e na América Latina. Em Gana e África Ocidental algumas comunidades atribuem o nascimento de crianças deficientes a supostas práticas de bruxaria por parte de vizinhos. Casos de feminicídios associados a acusações de bruxaria foram citados em relatório da ONU que estima 22 mil mortes em 10 anos. Na Nigéria recentemente, 25 mulheres foram assassinadas pelo Boko Haram, após a morte súbita de um dos filhos do líder do grupo jihadista. O grande número de casos pesquisados está relatado em uma segunda obra da escritora Silvia Federici “Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos nossos dias”, obra lançada no Brasil em 2019 (editora Boitempo).

O dia 10 de agosto foi declarado o Dia Mundial contra a Caça às Bruxas.

2-Preocupada com tais questões e com  a exigência de maior transparência em no e a obediência á lei, por parte das agremiações partidárias, que são de direito privado, o Conselho Estadual da Condição Feminina, pela sua Comissão da Mulher nos espaços de Poder e Decisão ( coordenada por Liz Coli)  realizou em 31.05.2022, em auditório da OABSP, o Fórum de Debates analizando a questão da representatividade feminina, com a importante palestra dos doutores 

Luciano Caparroz Pereira dos Santos, membro consultor de Direito Eleitoral da OABSP e diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral- MCCE-ficha Limpa e doutora Maíra Recchia, presidente do Observatório eleitoral da OABSP.

A Comissão organizou também no dia 07.06.2022 p.p. um segundo Fórum de Debates para discutir: 

OUVIDORIAS E COMPLIANCE NOS PARTIDOS POLÍTICOS: VAMOS ABRAÇAR ESSA PAUTA?   

Palestrantes convidados:

Doutora Raquel Branquinho coordenadora do GT de prevenção e combate à violência política de gênero junto ao Ministério Público Eleitoral e

Professor Luiz Carlos Gonçalves especialista em Direito Constitucional e Eleitoral, Procurador auxiliar da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo.

Liz Coli, advogada, conselheira do Centro de Integração Empresa-Escola -CIEE, conselheira do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF) e conselheira do Movimento Mulheres da Verdade (MMV).